Durante as primeiras décadas do século XIX
várias rebeliões de escravos explodiram na província da Bahia. A mais
importante delas foi a dos Malês, uma rebelião de caráter racial, contra a
escravidão e a imposição da religião católica, que ocorreu em Salvador, em
janeiro de 1835. Nessa época, a cidade de Salvador tinha cerca de metade de
sua população composta por negros escravos ou libertos, das mais variadas
culturas e procedências africanas, dentre as quais a islâmica, como os
haussas e os nagôs. Foram eles que protagonizaram a rebelião, conhecida
como dos "malê", pois este termo designava os negros muçulmanos,
que sabiam ler e escrever o árabe. Sendo a maioria deles composta por
"negros de ganho", tinham mais liberdade que os negros das fazendas, podendo
circular por toda a cidade com certa facilidade, embora tratados com
desprezo e violência. Alguns, economizando a pequena parte dos ganhos que
seus donos lhes deixavam, conseguiam comprar a alforria.
Em janeiro de 1835 um grupo de cerca de 1500
negros, liderados pelos muçulmanos Manuel Calafate, Aprígio, Pai Inácio,
dentre outros, armou uma conspiração com o objetivo de libertar seus
companheiros islâmicos e matar brancos e mulatos considerados traidores,
marcada para estourar no dia 25 daquele mesmo mês. Arrecadaram dinheiro
para comprar armas e redigiram planos em árabe, mas foram denunciados por
uma negra ao juiz de paz. Conseguem, ainda, atacar o quartel que controlava
a cidade mas, devido à inferioridade numérica e de armamentos, acabaram
massacrados pelas tropas da Guarda Nacional, pela polícia e por civis armados que estavam apavorados ante a
possibilidade do sucesso da rebelião negra.
No confronto morreram sete integrantes das
tropas oficiais e setenta do lado dos negros. Duzentos escravos foram
levados aos tribunais. Suas condenações variaram entre a pena de morte, os
trabalhos forçados, o degredo e os açoites, mas todos foram barbaramente
torturados, alguns até a morte. Mais de quinhentos africanos foram expulsos
do Brasil e levados de volta à África. Apesar de massacrada, a Revolta dos
Malês serviu para demonstrar às autoridades e às elites o potencial de
contestação e rebelião que envolvia a manutenção do regime escravocrata,
ameaça que esteve sempre presente durante todo o Período Regencial e se estendeu pelo Governo pessoal de D. Pedro II.
O
Levante dos Malês
João José Reis. Rebelião escrava no
Brasil: a história do Levante dos Malês (1835). São Paulo: Companhia
das Letras, 2003. 665p.
Acontecimento singular na história brasileira,
uma revolta de escravos, na maioria muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835,
o Levante dos Malês vem despertando a atenção de muitos pesquisadores e já
recebeu as mais diversas interpretações. No entanto, o trabalho que em
nossa opinião apresenta a análise mais completa sobre o Levante é o livro
do professor da Universidade Federal da Bahia João José Reis, o já
clássico Rebelião escrava no Brasil: a história do Levante dos
Malês (1835) , editado pela primeira vez em 1986 pela Brasiliense
e há muito esgotado. Pois foi com imensa alegria que se recebeu a notícia
de sua republicação pela Companhia das Letras. Uma edição revista e
ampliada, com 665 páginas, ricamente ilustrada e acrescida de um glossário
de termos religiosos muçulmanos, detalhadas fontes bibliográficas e notas.
João José Reis apresenta ao longo da obra os
aspectos mais relevantes da revolta. Mostra que, apesar de o Levante dos
Malês se situar num período especialmente conturbado da vida nacional e
geralmente ser classificado como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa
ligação existe mas é secundária. O Levante pertence, antes de tudo, à
tradição de rebeliões escravas na Bahia. Nessa época ocorreram várias,
sendo a Rebelião Malê a mais grave e a última delas. Ela possui uma outra
singularidade em relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos
(daí o nome de Malê, como os negros muçulmanos eram chamados na Bahia).
Reis aponta ainda como fator significativo a forte presença em Salvador da
escravidão de ganho (escravos que passavam o dia vagando pela cidade, prestando
algum serviço ou vendendo mercadorias e obrigados a entregar a seus
senhores um certo valor ao final do dia, podendo ficar com o excedente). É
inegável a maior “liberdade” que esse tipo de escravidão oferecia para os
contatos pessoais, os cultos religiosos e também para a organização de
revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava nas cidades assumia a
forma da revolta, ao passo que nas fazendas do interior ela se expressava
como fuga para os quilombos.
O autor dedica um capítulo à descrição da revolta
e o faz de forma tão viva que transporta o leitor para as vielas da cidade
de Salvador de 1835. Mostra que a rebelião (que deve ter contado com até
600 participantes) durou apenas algumas horas, nas quais os revoltosos se
tornaram senhores das ruas de Salvador. Revela também que ela repercutiu em
todo o Império e no exterior, permanecendo por longo tempo na memória das
classes dominantes da Bahia e mesmo da Corte, que tomaram diversas medidas
para impedir que outro movimento similar ocorresse. A começar pela
repressão aos envolvidos, descrita com detalhes pelo autor. Grande parte
deles foi condenada a penas de castigo (chibatadas) e prisão. Um número
considerável (libertos em geral) foi deportado para a África (primeira vez
que essa pena foi instituída no Brasil) e uma menor parcela terminou
condenada à morte.
Reis mostra que praticamente todo o núcleo
organizador da revolta e a maior parte dos participantes eram muçulmanos.
Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem iorubana:
majoritariamente nagôs, mas também hauçás, ewes e outras etnias iorubanas.
O autor revela ainda a pequena participação de etnias originárias de Angola
(Angola e Benguela), sendo quase inexistente a presença de grupos da Costa
do Ouro (Costa e Mina) [1]. O autor se refere, por fim, a uma parcela
ínfima de crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos. A maioria
esmagadora era realmente de africanos. Quanto à condição social e de
trabalho dos revoltosos, a maior parte era composta de escravos, mas havia
um grande número de libertos (algo em torno de 60% e 40%, respectivamente).
Por certo eles estavam entre os miseráveis da sociedade, sendo que apenas
um ou dois libertos revoltosos tinham uma condição econômica um pouco
melhor. As ocupações mais comuns entre eles eram os serviços urbanos em
geral, trabalho doméstico, artesanato e vendas. A maioria dos escravos
participantes na revolta pertencia à categoria de escravos de ganho,
enquanto um número menor, mas considerável, fazia serviços domésticos.
Para Reis, o Levante pode ser explicado através
de um tripé: religião, etnia e escravidão. Como influência secundária, ele
alude ao período conturbado no Brasil (e especialmente na Bahia) no qual a
revolta se deu. O que pode parecer à primeira vista uma saída fácil para a
questão e um simples somatório de fatores se mostra, na realidade, uma
interpretação que melhor contempla a complexidade do processo histórico que
levou ao Levante. Tampouco é um somatório de várias idéias: Reis considera
criticamente as visões anteriores sobre o Levante e retrabalha alguns
elementos de outros autores, partindo sempre de um mergulho na sociedade
baiana do período, tarefa até então não realizada.
Reis afirma que nunca teve dúvidas acerca da
inspiração religiosa do movimento. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835
foi o islã e seu núcleo dirigente era malê. Mas a importante presença
muçulmana que o distingue dos demais movimentos de africanos não pode
ocultar outros fatores que mobilizaram os participantes do Levante, percebidos
por Reis em depoimentos de época, principalmente dos seus envolvidos. Ao
mesmo tempo que muitos participaram motivados pela fé muçulmana, outros o
fizeram por serem nagôs fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um
parêntese: o limite entre a identidade étnica e a identidade religiosa era
muito maleável nos africanos da Bahia daquele período. A identidade étnica
deles era extremamente dinâmica, transformando-se em algo diferente daquela
que existia em solo africano. Por outro lado, o islã, apesar de ser uma
religião universalista, tinha aqui um particularismo étnico, pois estava
mais difundida em certas etnias, como no caso dos próprios nagôs e dos
hauçás. Assim diz o próprio Reis: “Embora o islamismo não seja uma religião
étnica [...], ele parece ter se tornado exatamente isso nesta rebelião
específica, por haver representado sobretudo a força espiritual e política
de negros nagôs” (p. 349).
Ademais, o autor sustenta que haveria a
identidade escrava, de classe: “O movimento de 1835 se beneficiou da solidariedade
coletiva associada ao trabalho urbano. Chamemos a isto de uma dimensão de
classe da revolta, mas classe no sentido dinâmico empregado por E. P.
Thompson” (p. 386). Em outro texto, Reis acrescenta: “A rebelião teria tido
também uma orientação de classe por ter sido feita e dirigida
majoritariamente por escravos e porque a linguagem anti-senhorial dos
presos revela sua face antiescravista. Foi também assim considerada pelo
Estado escravocrata, que definiu, reprimiu e castigou os rebeldes acionando
uma linguagem e uma legislação especificamente antiescrava.”
Em suma, João José Reis apresenta sua leitura
do Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa, étnica e de
classe. O autor é ousado ao interligar elementos que seriam inconciliáveis
para muitos. Aproveitando o que há de melhor nos trabalhos anteriores sobre
o Levante, Reis realça a religião muçulmana como o seu motor principal,
ressalvando não ser ele o único e que essa marca não significa que os malês
estivessem dando prosseguimento à jihad africana em solo
baiano.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado
por Reis na revolta merece alguns comentários. Parece claro que a condição
econômica inferior dos envolvidos tem sua participação na arregimentação de
participantes para a revolta, mas isso não implica necessariamente uma
interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e
senhores. Há uma participação maior de escravos que de libertos, mas a
diferença é pequena (algo em torno de 20%). Reis não considera isso relevante,
afirmando que os próprios libertos estariam vinculados a uma relação que
remetia à escravidão, estando submetidos aos senhores escravocratas. No
entanto, essa relativização da condição de liberto encontra limitações. Com
todas as dificuldades que pudessem enfrentar, os libertos estavam numa
posição muito diferente da dos escravos, observando-se vários casos de
libertos que possuíam seus próprios escravos.
Um mergulho nas declarações dos envolvidos nos
processos (a fonte principal de Reis) mostra que os planos para depois da
vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e crioulos (negros nascidos
no Brasil), eventualmente com a escravização de mulatos e o possível
massacre dos africanos que porventura se colocassem contra a revolta. Esses
planos, e outras declarações, revelam que o Levante era entendido como uma
luta da “terra de negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos
próprios participantes. O que isso significava? Significava que a revolta
era uma luta dos africanos (escravos ou não) contra os “brasileiros”
nascidos no Brasil (senhores ou não, brancos ou negros) e, eventualmente,
contra os africanos que se colocassem ao lado dos “brasileiros”. Nesse
confronto, os rebeldes consideravam os crioulos e mulatos aliados dos
brancos (identificação que provinha do fato de haverem nascido na “terra de
branco”).
Essa intrigante divisão entre a “terra de
branco” e a “terra de negro” merece um estudo mais aprofundado. Em última
instância, ela deverá ter ligação com a condição escrava dos africanos. Foi
por causa dessa condição que eles foram arrancados de sua terra e trazidos
para terra estrangeira, sendo ela o motivo de sua posição subalterna. Mas
os revoltosos não se viam como escravos em luta contra seus senhores. E nem
mesmo os que enfrentaram a revolta assim agiram nessa polarização
escravo/senhor, como o próprio Reis observa: “Os laços de cultura e
nacionalidade uniram contra os africanos os mais poderosos e os mais
miseráveis dos brasileiros, mesmo os que não possuíam escravo algum, ou que
eram eles próprios escravos” (p. 546). De qualquer modo, parece inegável a
dimensão política da revolta, já que a questão do poder (e também social)
se colocava para os seus participantes. O autor tem razão ao apontar esse
aspecto e está fora de dúvida também que nessa reedição ele o trata de
forma mais ampla e convincente que no texto da primeira edição do livro. O
número consideravelmente maior de páginas faz de Rebelião escrava
no Brasil: a história do Levante dos Malês a mais completa sobre o
tema da revolta de 1835.
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