O Levante
dos Malês
Fabrício Pereira da Silva - 2004
Levante dos Malês (1835). São Paulo: Companhia das Letras,
2003. 665p.
Acontecimento singular na história brasileira, uma
revolta de escravos, na maioria muçulmanos, ocorrida na Bahia em 1835, o
Levante dos Malês vem despertando a atenção de muitos pesquisadores e já
recebeu as mais diversas interpretações. No entanto, o trabalho que em nossa
opinião apresenta a análise mais completa sobre o Levante é o livro do
professor da Universidade Federal da Bahia João José Reis, o já clássico Rebelião
escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês (1835) , editado
pela primeira vez em 1986 pela Brasiliense e há muito esgotado. Pois foi com
imensa alegria que se recebeu a notícia de sua republicação pela Companhia das
Letras. Uma edição revista e ampliada, com 665 páginas, ricamente ilustrada e
acrescida de um glossário de termos religiosos muçulmanos, detalhadas fontes
bibliográficas e notas.
João José Reis apresenta ao longo da obra os
aspectos mais relevantes da revolta. Mostra que, apesar de o Levante dos Malês
se situar num período especialmente conturbado da vida nacional e geralmente
ser classificado como mais uma “revolta do Período Regencial”, essa ligação
existe mas é secundária. O Levante pertence, antes de tudo, à tradição de
rebeliões escravas na Bahia. Nessa época ocorreram várias, sendo a Rebelião
Malê a mais grave e a última delas. Ela possui uma outra singularidade em
relação às demais: a presença majoritária de muçulmanos (daí o nome de Malê,
como os negros muçulmanos eram chamados na Bahia). Reis aponta ainda como fator
significativo a forte presença em Salvador da escravidão de ganho (escravos que
passavam o dia vagando pela cidade, prestando algum serviço ou vendendo
mercadorias e obrigados a entregar a seus senhores um certo valor ao final do
dia, podendo ficar com o excedente). É inegável a maior “liberdade” que esse
tipo de escravidão oferecia para os contatos pessoais, os cultos religiosos e
também para a organização de revoltas. Por isso, em geral, a rebeldia escrava
nas cidades assumia a forma da revolta, ao passo que nas fazendas do interior
ela se expressava como fuga para os quilombos.
O autor dedica um capítulo à descrição da revolta e
o faz de forma tão viva que transporta o leitor para as vielas da cidade de
Salvador de 1835. Mostra que a rebelião (que deve ter contado com até 600
participantes) durou apenas algumas horas, nas quais os revoltosos se tornaram
senhores das ruas de Salvador. Revela também que ela repercutiu em todo o
Império e no exterior, permanecendo por longo tempo na memória das classes
dominantes da Bahia e mesmo da Corte, que tomaram diversas medidas para impedir
que outro movimento similar ocorresse. A começar pela repressão aos envolvidos,
descrita com detalhes pelo autor. Grande parte deles foi condenada a penas de
castigo (chibatadas) e prisão. Um número considerável (libertos em geral) foi
deportado para a África (primeira vez que essa pena foi instituída no Brasil) e
uma menor parcela terminou condenada à morte.
Reis mostra que praticamente todo o núcleo
organizador da revolta e a maior parte dos participantes eram muçulmanos.
Quanto à sua etnia, a imensa maioria dos revoltosos tinha origem iorubana:
majoritariamente nagôs, mas também hauçás, ewes e outras etnias iorubanas. O
autor revela ainda a pequena participação de etnias originárias de Angola
(Angola e Benguela), sendo quase inexistente a presença de grupos da Costa do
Ouro (Costa e Mina) [1]. O autor se refere, por fim, a uma parcela ínfima de
crioulos (negros nascidos no Brasil) e pardos. A maioria esmagadora era
realmente de africanos. Quanto à condição social e de trabalho dos revoltosos,
a maior parte era composta de escravos, mas havia um grande número de libertos
(algo em torno de 60% e 40%, respectivamente). Por certo eles estavam entre os
miseráveis da sociedade, sendo que apenas um ou dois libertos revoltosos tinham
uma condição econômica um pouco melhor. As ocupações mais comuns entre eles
eram os serviços urbanos em geral, trabalho doméstico, artesanato e vendas. A
maioria dos escravos participantes na revolta pertencia à categoria de escravos
de ganho, enquanto um número menor, mas considerável, fazia serviços
domésticos.
Para Reis, o Levante pode ser explicado através de
um tripé: religião, etnia e escravidão. Como influência secundária, ele alude
ao período conturbado no Brasil (e especialmente na Bahia) no qual a revolta se
deu. O que pode parecer à primeira vista uma saída fácil para a questão e um
simples somatório de fatores se mostra, na realidade, uma interpretação que
melhor contempla a complexidade do processo histórico que levou ao Levante.
Tampouco é um somatório de várias idéias: Reis considera criticamente as visões
anteriores sobre o Levante e retrabalha alguns elementos de outros autores,
partindo sempre de um mergulho na sociedade baiana do período, tarefa até então
não realizada.
Reis afirma que nunca teve dúvidas acerca da
inspiração religiosa do movimento. Para ele, a ideologia da Revolta de 1835 foi
o islã e seu núcleo dirigente era malê. Mas a importante presença muçulmana que
o distingue dos demais movimentos de africanos não pode ocultar outros fatores
que mobilizaram os participantes do Levante, percebidos por Reis em depoimentos
de época, principalmente dos seus envolvidos. Ao mesmo tempo que muitos
participaram motivados pela fé muçulmana, outros o fizeram por serem nagôs
fundamentalmente. Aqui é necessário abrir um parêntese: o limite entre a
identidade étnica e a identidade religiosa era muito maleável nos africanos da
Bahia daquele período. A identidade étnica deles era extremamente dinâmica,
transformando-se em algo diferente daquela que existia em solo africano. Por
outro lado, o islã, apesar de ser uma religião universalista, tinha aqui um
particularismo étnico, pois estava mais difundida em certas etnias, como no
caso dos próprios nagôs e dos hauçás. Assim diz o próprio Reis: “Embora o islamismo
não seja uma religião étnica [...], ele parece ter se tornado exatamente isso
nesta rebelião específica, por haver representado sobretudo a força espiritual
e política de negros nagôs” (p. 349).
Ademais, o autor sustenta que haveria a identidade
escrava, de classe: “O movimento de 1835 se beneficiou da solidariedade
coletiva associada ao trabalho urbano. Chamemos a isto de uma dimensão de
classe da revolta, mas classe no sentido dinâmico empregado por E. P. Thompson”
(p. 386). Em outro texto, Reis acrescenta: “A rebelião teria tido também uma
orientação de classe por ter sido feita e dirigida majoritariamente por
escravos e porque a linguagem anti-senhorial dos presos revela sua face
antiescravista. Foi também assim considerada pelo Estado escravocrata, que
definiu, reprimiu e castigou os rebeldes acionando uma linguagem e uma
legislação especificamente antiescrava.”
Em suma, João José Reis apresenta sua leitura do
Levante dos Malês como uma combinação de luta religiosa, étnica e de classe. O
autor é ousado ao interligar elementos que seriam inconciliáveis para muitos.
Aproveitando o que há de melhor nos trabalhos anteriores sobre o Levante, Reis
realça a religião muçulmana como o seu motor principal, ressalvando não ser ele
o único e que essa marca não significa que os malês estivessem dando
prosseguimento à jihad africana em solo baiano.
No entanto, o elemento “de classe” sublinhado por
Reis na revolta merece alguns comentários. Parece claro que a condição
econômica inferior dos envolvidos tem sua participação na arregimentação de
participantes para a revolta, mas isso não implica necessariamente uma
interpretação do Levante como uma luta de classes entre escravos e senhores. Há
uma participação maior de escravos que de libertos, mas a diferença é pequena (algo
em torno de 20%). Reis não considera isso relevante, afirmando que os próprios
libertos estariam vinculados a uma relação que remetia à escravidão, estando
submetidos aos senhores escravocratas. No entanto, essa relativização da
condição de liberto encontra limitações. Com todas as dificuldades que pudessem
enfrentar, os libertos estavam numa posição muito diferente da dos escravos,
observando-se vários casos de libertos que possuíam seus próprios escravos.
Um mergulho nas declarações dos envolvidos nos
processos (a fonte principal de Reis) mostra que os planos para depois da
vitória eram de massacre dos brancos, mulatos e crioulos (negros nascidos no
Brasil), eventualmente com a escravização de mulatos e o possível massacre dos
africanos que porventura se colocassem contra a revolta. Esses planos, e outras
declarações, revelam que o Levante era entendido como uma luta da “terra de
negro” contra a “terra de branco”, nos dizeres dos próprios participantes. O
que isso significava? Significava que a revolta era uma luta dos africanos
(escravos ou não) contra os “brasileiros” nascidos no Brasil (senhores ou não,
brancos ou negros) e, eventualmente, contra os africanos que se colocassem ao
lado dos “brasileiros”. Nesse confronto, os rebeldes consideravam os crioulos e
mulatos aliados dos brancos (identificação que provinha do fato de haverem
nascido na “terra de branco”).
Essa intrigante divisão entre a “terra de branco” e
a “terra de negro” merece um estudo mais aprofundado. Em última instância, ela
deverá ter ligação com a condição escrava dos africanos. Foi por causa dessa
condição que eles foram arrancados de sua terra e trazidos para terra
estrangeira, sendo ela o motivo de sua posição subalterna. Mas os revoltosos
não se viam como escravos em luta contra seus senhores. E nem mesmo os que
enfrentaram a revolta assim agiram nessa polarização escravo/senhor, como o
próprio Reis observa: “Os laços de cultura e nacionalidade uniram contra os
africanos os mais poderosos e os mais miseráveis dos brasileiros, mesmo os que
não possuíam escravo algum, ou que eram eles próprios escravos” (p. 546). De
qualquer modo, parece inegável a dimensão política da revolta, já que a questão
do poder (e também social) se colocava para os seus participantes. O autor tem
razão ao apontar esse aspecto e está fora de dúvida também que nessa reedição
ele o trata de forma mais ampla e convincente que no texto da primeira edição
do livro. O número consideravelmente maior de páginas faz de Rebelião
escrava no Brasil: a história do Levante dos Malês a mais completa
sobre o tema da revolta de 1835.
Fabrício Pereira da Silva é mestrando do programa de
pós-graduação em História Social da UFRJ.
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